E se eu colocasse um precatório em blockchain?
- Melissa Castello
- 19 de abr. de 2023
- 4 min de leitura

Não sei se você já sabe disso, mas eu sou uma grande entusiasta da blockchain.
Não, não é porque ganhei alguns milhares de reais quando a bitcoin explodiu. Longe disso, não tenho um centavo investido em criptos. Eu gosto da tecnologia por trás dos criptoativos, simplesmente porque ela cria confiança. E confiança é tudo.
Aliás, falamos muito sobre isso no X Encontro Nacional de Procuradorias Fiscais, que aconteceu semana passada: como aumentar a confiança no sistema tributário, a partir de mudanças tecnológicas na metodologia de arrecadação dos tributos?
Pergunta difícil, resposta mais ainda. Mas tem uma série de ideias boas circulando por aí: split payment, tokenização de créditos de ICMS, entre tantas outras. Sobre split, leiam a dissertação de mestrado da Luciana Marques Vieira da Silva Oliveira. Sobre tokenização, a referência no assunto é o Richard Ainsworth, mas eu também tenho um artigo em que tento trazer a pesquisa dele para o manicômio brasileiro.
Mas hoje, quero falar sobre precatórios. Não sei no seu Estado, mas no meu, tem fila para pagar esses créditos. E, como demora, a galera vende seu crédito (tecnicamente, faz uma cessão de direitos), com deságio. Muitas vezes, o comprador só quer lucrar. Em outras, ele usa o precatório para pagar tributos. Isso acontece por aí também?
Pois é... Se acontece, e se você já trabalhou com isso, você sabe que é um negócio de risco. Falta confiança por todos os lados:
- E se o dono do precatório vende para mim hoje, e para outra pessoa amanhã?
- Ele já vendeu 9 frações do precatório, mas tá me dizendo que ainda tem saldo. Confio?
- O advogado tem direito a reserva de honorários?
- E os juros e a correção monetária, estão certinhos?
Essas são só algumas das muitas perguntas que um potencial comprador de precatórios tem que se fazer. Dá um medinho, né?
Do lado do fisco, o medinho é tão grande quanto: e se eu liberar o dinheiro para a pessoa errada, porque depois de 200 cessões de crédito, tá difícil definir quem tem direito a o quê???
É aí que entra a blockchain. Quem já pesquisou o termo blockchain sabe que ela é conhecida como o “protocolo de confiança”, por permitir que pessoas façam negócios seguros, sem precisar confiar um no outro. A tecnologia assegura essa confiança, ao registrar os dados – de forma imutável – na rede. E a tecnologia blockchain resolve o problema do gasto duplo: quando transfiro o token para uma pessoa, eu não posso transferi-lo novamente (porque o token não é mais meu, né?). É por isso que eu posso mandar uma bitcoin para você, e você tem a segurança de receber esse ativo.
Da mesma forma, se eu tokenizar os precatórios, eu posso transferir meu precatório para um terceiro, que vai ter a segurança de recebe-lo. Também posso transferir uma fração do meu precatório, mantendo o saldo restante na minha wallet.
Legal, né? Gera confiança em um mercado que hoje é muito desconfiado...
Tá, mas daí você vai me dizer: “Eu vi que a empresa XXX tá vendendo tokens de precatório em blockchain como opção de investimento, isso já existe!”.
Eu sei que já existe, e essa é a beleza da coisa: se a empresa XXX já desenvolveu a tecnologia, significa que é possível fazer. O problema é que o token da empresa XXX não tem poder liberatório perante o fisco. Não dá para usar o token para compensar os tributos, e o token tampouco entra na fila de pagamento. Quando se compra o token da empresa XXX, na verdade se está celebrando um contrato com essa empresa, que supostamente é a titular do precatório. O token representa uma expectativa de direito. Lá no futuro, quando o precatório for pago, a empresa XXX repassa a fração ideal do precatório para cada um dos titulares do token.
Mas, se for o Governo a desenvolver a tecnologia, daí muda tudo!
Se os tokens que representam o precatório forem emitidos pelo Governo (que é o devedor do precatório), o token É o precatório (e não uma mera expectativa de direito de um crédito futuro). Esse token passa a ter poder liberatório perante o fisco, podendo ser usado para compensar tributos, e entrando na fila de pagamento. Lá no futuro, quando o precatório for pago, o dinheiro cai direto na conta do titular do token, sem intermediação da empresa XXX.
Se automatizar a coisa direitinho, a gente vincula o token ao processo de execução de sentença; e já adiciona os parâmetros de juros, correção monetária e eventuais descontos tributários, para que todo mundo saiba o valor atualizado do título.
As vantagens em termos de confiança são evidentes:
- Aquela pessoa que quer vender o seu precatório, tem um procedimento mais simples do que o atual, pois todos os dados necessários estão registrados ali na blockchain;
- Aquela pessoa que quer comprar precatório, sabe que está comprando um “título quente” (pois não há risco de gasto duplo); e
- O fisco sabe que está pagando para o verdadeiro credor (mesmo se houver inúmeras cessões de crédito referentes ao mesmo precatório).
Legal, né?
Agora, quem sabe desenvolver esse brinquedo? Bora lá!
P.S.: eu escrevi um artigo sobre isso com o Guilherme Sesti Santos, bem mais técnico. Tá lá no livro Procuradorias 4.0.
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