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Não seguimos a Constituição.

  • Foto do escritor: Melissa Castello
    Melissa Castello
  • 2 de nov. de 2022
  • 4 min de leitura
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Lá se vão 20 anos, mas eu lembro como se fosse hoje: começando no meu primeiro estágio, o meu chefe me passou uma notificação de lançamento fiscal de contribuição previdenciária, para fazer defesa administrativa. Eu, cheia de boas intenções, comprometimento, e me achando A Advogada, fiz uma peça toda em cima da Constituição.


Era princípio da legalidade, princípio da capacidade contributiva, proibição de confisco,... na minha visão, todos cruelmente violados pelo Fisco voraz!


Orgulhosa, apresentei a peça para o chefe, que deu aquela olhada de canto, e esboçou um sorrisinho irônico. Que frio na barriga! O que será que eu tinha feito de errado?


No dia seguinte, descobri que... tudo certo, a defesa administrativa foi protocolada exatamente como eu tinha feito. Só muito tempo depois eu entendi que a defesa foi protocolada como eu tinha feito não porque ela estava “certa”, mas porque a chance de êxito, naquele caso, era de 0%.


E foi mais ou menos nessa época que eu descobri, atônita, que tribunais administrativos não analisam a constitucionalidade de leis. Tem até súmula do CARF nesse sentido.

Como assim?!?


Há violação da lei das leis, do benchmark do que é justo e correto, e os servidores públicos deixam assim?!?


Avancemos para os dias atuais. Eu tô do outro lado do balcão há mais de uma década, e, para desespero de muitos (inclusive meu), tô entendendo a perspectiva do servidor.


É aquela velha história de princípios e regras, normas de conteúdo indeterminado e normas de conteúdo concreto, etc e tal. Enquanto a nossa Constituição é recheada de valores abstratos, as leis, decretos, instruções normativas, regulamentos e fluxogramas da repartição são bem concretos. Esses atos normativos têm um nível de detalhamento para deixar qualquer outsider louco. 


Mas o servidor público se sente confortável com eles, sendo o primeiro a declamar “o lançamento é válido com base na nota explicativa 29 da alínea aa do inciso XIV do art. 24 do anexo II do Decreto XXX, na versão atualizada pelo Decreto YYY”. E é assim que, no serviço público, a nossa velha e maltratada Carta Magna vai sendo esquecida, escanteada, abrindo-se espaço para o poder do regulamentador maluco.


Mas isso é ruim?


De forma alguma! Já pensaram se cada julgador administrativo tivesse autonomia e independência para estabelecer os parâmetros interpretativos do princípio da moralidade? Ou do conceito de “prestação de serviço”, para fins de incidência do ISS? Seria uma bagunça, na certa!


Além disso, quando o julgador administrativo sobrepõe a regra estabelecida em uma lei, em sentido estrito, a uma das várias interpretações possíveis das normas constitucionais, ele está simplesmente agindo com deferência ao legislador. O julgador administrativo – em regra um servidor público do Poder Executivo – pode e deve interpretar uma lei (ato normativo do Poder Legislativo) como A FONTE de informação e decisão, por um único e singelo motivo: o Legislador é O Poder dotado de legitimidade democrática para criar as regras do jogo. Simples assim.


Mas há situações em que essa afirmação não funciona bem... 

Quais são elas?


Os casos em que há decisão judicial reconhecendo a inconstitucionalidade da lei.

Assim como o Legislativo é o Poder que cria as regras do jogo, o Judiciário é o Poder que pode afastar essas regras, quando elas violam a Constituição. Nesses casos, é óbvio que as regras não devem ser aplicadas, pois elas afrontam a lei das leis.


Mas essa obviedade, que no papel parece tão fácil de aplicar, na prática causa uma série de dificuldades. Não vou nem entrar nas diversas formas de declaração de inconstitucionalidade da lei (controle incidental, controle concentrado; eficácia inter partes, eficácia erga omnesex tunc, ex nunc...), porque se não a gente não acaba esse artigo.


Vamos ficar no controle concentrado com eficácia erga omnes (para quem faltou essa aula, esse é o juridiquês para dizer que a decisão é da mais alta Corte – em regra, o STF – e vale para todo mundo). 


Nesse caso, se tem uma decisão do STF dizendo que aquela regra que está lá na leizinha X é inconstitucional, porque raios o tribunal administrativo deixaria de aplica-la?!?

Simples: porque essa decisão não transitou em julgado.


Nós, advogados, gostamos de um recursinho, né? E daí a gente entra com embargos de declaração, para perguntar se aquele “;” do acórdão não deveria ser uma “,”.


Muitas vezes, a solução jurídica já está posta, e é irrecorrível: a regra é inconstitucional, e não se discute. Mas continuamos analisando aspectos secundários, e lá se vão meses, às vezes anos...


Nesses casos, o tribunal administrativo deveria aplicar o precedente do STF, e afastar a incidência da regra inconstitucional. Certo?

Depende...


Os tribunais administrativos nem sempre são compostos por advogados, e não devem sair por aí interpretando e aplicando os precedentes do Supremo a la loca.


A interpretação de decisões judiciais, e a orientação jurídica do Poder Público compete à Advocacia-Pública. É o que tá lá nos arts. 131 e 132 da Constituição. Então, os tribunais administrativos devem aguardar a orientação das suas consultorias jurídicas. Se a orientação jurídica não vier, devem perguntar para a PGE.


É o que se depreende do art. 19-A, III, da Lei 10.522/2002, que orienta que os Auditores-Fiscais da Receita Federal devem consultar a PGFN. Na mesma linha, o art. 58, § 1º, da Lei do Estado do RS 15.612/2021 (nossa lei do processo administrativo), diz para as autoridades administrativas perguntarem para a PGE.


Essa solução compatibiliza a deferência do Poder Executivo ao Poder Legislativo com a segurança jurídica do servidor público. Qual é o problema dela? Demora!

Mas, vamos ser bem sinceros, o problema da demora não decorre da solução dada, mas do fluxo do processo judicial.

P.S.1: tudo isso vale quando a decisão é do STJ, e envolve o reconhecimento de ilegalidade de um ato regulamentar.


P.S.2: eu sei que você leu o título, e esperava uma crítica às eleições... Mas, se você chegou até aqui, deve estar rindo agora...

 
 
 

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